(...) a imagem que os cabo-verdianos têm dos imigrantes e o lugar que ocupam no mercado de trabalho permite-nos concluir que Cabo Verde está a cometer os mesmos erros que foram cometidos em outros contextos de acolhimento: está a deixar-se levar a reboque da realidade; assiste-se de forma impávida à criação de uma imagem negativa dos imigrantes; e, face à ausência de políticas estruturantes para o sector, vão emergindo obstáculos deliberados às tentativas de legalização; e manifestações xenófobas dissimuladas”. Por: Suzano Costa*
(Francisco Carvalho, sociólogo e investigador, in Cabo Verde face ao Desafio da Imigração)
O discurso legitimador comummente veiculado a propósito da representação social do cabo-verdiano redunda, quase invariavelmente, em devaneios narcisistas que prestam tributo à singularidade do “povo das ilhas”, à sua morabeza, à sua excepcionalidade na relação com o “outro” e a particularidades várias na “arte do bem receber”. Escusado será dizer que à esmagadora maioria das considerações que suportam tais conjecturas essencializantes, subjaz um substrato puramente retórico, panfletário e de auto-elogio umbiguista que fez escola, com relativo e atamancado êxito, em outras paragens.
Perscrutar a persistência de lógicas racistas, discriminatórias e xenófobas a partir da Sul, além de constituir uma tarefa hercúlea, pressupõe um exercício de autocrítica e de (des)construção perspectivista das várias contradições internas por que perpassa a sociedade cabo-verdiana e o modus vivendi das suas gentes.
Destacaria, em resumo, três advertências propedêuticas essenciais: (i) a “morabeza” cabo-verdiana e a “arte do bem receber” que domina a retórica pública se aplica única e exclusivamente ao estrangeiro cooperante, ao turista de fenotipo branco e aos indivíduos de condição socioeconómica abastada; (ii) os imigrantes da sub-região africana, convencionalmente apelidados de “mandjakus”, além de marginalizados, são objecto de tratamento diferenciado, de tonalidade racista, discriminatória e xenófoba, estando subjacente ao termo mandjaku uma conotação marcadamente pejorativa e estigmatizante; (iii) a retórica do “amigo” é veiculada, tão-somente, em contexto de interacção comercial, e encobre uma suposta, e inexistente, relação de proximidade, movida, sobretudo, por interesses economicistas e de deflação do preço de mercado dos produtos em transacção.
A construção das representações sociais do “nós cabo-verdiano” resulta de processos socio-históricos e de uma construção social da realidade que insiste, categoricamente, em recusar a existência de preconceitos na relação com o “outro”, veiculando a ideia de uma “comunidade imaginada” que apregoa, às vezes levianamente, a morabeza como o cartão-de-visita por excelência.
Apenas para inglês ver? A verdade é que arranjamos quotidianamente vários subterfúgios para relativizar a gravidade de uma infinidade de situações que dão conta de atitudes racistas, discriminatórias e xenófobas protagonizadas por cabo-verdianos para com indivíduos de outras proveniências.
O que estará por detrás da evolução da designação de “mandjaku” para a de “amigo”? Um mero exercício de sofisticação linguística sem qualquer substrato de aproximação efectiva? Ou, tão-somente, uma verborreia estrategicamente mobilizada pelo berdiano, geralmente armado em charlatão, com o ignóbil propósito de alargar a sua estrutura de oportunidades económicas e de regatear o preço dos produtos comercializados pelos “mandjakus”?
À designação de “mandjaku” está subjacente um universo multifacetado de estereótipos, estigmas e anátemas que concorrem para a subalternização social dos grupos sociais sob os quais recai tal epíteto, pese embora abundem, entre os ilhéus, estratégias discursivas de desculpabilização e relativização das suas atitudes discriminatórias e xenófobas face a essas comunidades. Quando há registo de manifestações de racismo e de xenofobia em Cabo Verde para com os indivíduos da costa ocidental africana, a tendência imediata do ilhéu é relativizar as coisas, apelando à sua singularidade e à sua capacidade excepcional de se relacionar com o “outro”. Por outro lado, se atendermos à utilização da designação “mandjaku”, apesar de lhe estar subjacente uma conotação pejorativa e estigmatizante, o ilhéu na sua estratégia de se escapulir a potenciais acusações de discriminação relativiza e reduz o termo a uma questão nominal e de “identificação social” (do grupo).
As situações que denunciam manifestações de racismo, discriminação e xenofobia em Cabo Verde são, por incrível que pareçam, praticamente as mesmas que os imigrantes cabo-verdianos são objecto em contextos migratórios e se baseiam igualmente critérios de natureza fenotípica: recusa de arrendamento de apartamentos a mandjakus (ou fazê-lo em último recurso), existência de um número reduzido, senão nulo, de “casais mistos” de nacionais das ilhas e indivíduos da sub-região africana (vulgo, mandjakus), a forma desumana, violenta e discriminatória como estes são sujeitos ao crivo do departamento de estrangeiros e fronteiras, para não falar dos estereótipos negativos, das representações sociais e do olhar estigmatizante de que são sujeitos por parte dos ilhéus.
A existência de “casais mistos” é frequentemente utilizada como barómetro para aferir o grau de aceitação e de integração efectiva dos migrantes nas sociedades de acolhimento. Não se trata de um indicador de somenos importância, porquanto encontramos em Cabo Verde, com relativa frequência, “casais mistos” compostos por cabo-verdianos (as) com indivíduos de proveniências várias: portugueses, ingleses, brasileiros, norte-americanos, franceses etc… Mesmo no caso dos chineses que relevam maior fechamento comunitário e um grau de reprodução endogâmica sem precedentes é cada vez mais frequente o nascimento de crianças mestiças de “olhos em bico”. No entanto, rareiam e são praticamente inexistentes “casais mistos” de cabo-verdianos (as) e “mandjakus”. Porque será? Preferências estéticas? As minhas interrogações permanecem… Relativamente aos indivíduos da costa ocidental africana, a verdade é que nem a imagem mistificada de possuírem um falo de proporções pornográficas tem constituído uma vantagem comparativa e competitiva na “arte do amor e do engate” lá pelas paragens tropicais...onde o calor é abrasador e o libido atinge os píncaros. Falará aqui mais alto o estigma do “mandjaku” como variável explicativa?
Outrossim, denote-se que a evolução da designação de “mandjaku” para a de “amigo” é meramente retórica, nominal e transitória, emergindo apenas em contextos de interacção económica e comercial. Além de ilusória – uma vez que encobre uma pretensa relação de proximidade –, encapota situações de exploração económica protagonizadas pelo ilhéu ao regatear o preço dos produtos comercializados pelo “mandjaku”: um processo doloroso, violento e desmotivador para o “mandjaku”, que vende o produto por se tratar do seu único reduto de sobrevivência, mas, quase sempre, jocosamente encarado pelo cabo-verdiano.
O estigma do “mandjaku”, a persistência de sentimentos xenófobos e discriminatórios para com os imigrantes da costa ocidental africana, a sua condição subalterna, e o não reconhecimento da sua importância e contributo para a sociedade cabo-verdiana atesta um paradoxo sem precedentes na história de uma nação diasporizada e forjada na emigração, e o facto de estarmos, levianamente, a “enfrentar a questão da imigração com dois pesos e duas medidas”.
A “morabeza” invariavelmente apresentada como o nosso cartão-de-visita tem como destinatário o estrangeiro cooperante, o branco. Porque será? Enquanto apregoamos apoteoticamente a nossa excepcionalidade, relativizamos registos, cada vez mais frequentes, de manifestações de racismo, xenofobia e discriminação porquanto os imigrantes do Sul continuam a ser, sistematicamente, o “bode de expiatório” de todos os males do arquipélago: narcotráfico, doenças venéreas e endémicas, prostituição, assaltos, violência urbana, pequena criminalidade organizada, falsificação de notas e documentos entre outros...
Morabezas, singularidades, especificidades e outros estratagemas, é tudo para inglês ver e, já agora, para comprar uma vez que vivemos disto. É a marca Cabo Verde no seu esplendor. Nada melhor do que viver à custa de uma boa publicidade enganosa...!?
Fontes: Politólogo
Nenhum comentário:
Postar um comentário